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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Étienne de La Boétie - Discurso Sobre a Servidão Voluntaria.


Étienne de La Boétie morreu aos 33 anos de idade, em 1563. Deixou sonetos, traduções de Xenofonte e Plutarco e na idade de 18 anos  escreveu o “Discurso da Servidão Voluntária”, o primeiro e um dos mais vibrantes hinos à liberdade dentre os que já se escreveram na historia. Apesar do discurso de Boétie ter sido escrito no século XVI continua sendo uma reflexão que amplia a nossa consciência a respeito da  liberdade.  A luta pela liberdade continua sendo o principal destino do ser humano, apesar da  existência dos que aceitam uma servidão voluntária.

O Discurso, que no século XVI Montaigne considerava difícil prefaciar, hoje em dia é ainda tristemente atual. “O ser humano encontra-se em amarras auto-infligidas por toda a parte” como dizia Manuel J. Gomes, importante tradutor de La Boétie para o português.

O nome de Étienne de La Boétie costuma ser associado ao eminente ensaísta Michel de Montaigne, devido à relação íntima de amizade que eles tinham.  Mas, como alguns historiadores vieram a reconhecer, ele deveria ser lembrado como um dos filósofos políticos que mais influenciaram as futuras gerações, não apenas sendo um dos fundadores da filosofia política francesa, mas também pela relevância imemorial de muitas de suas visões teóricas

A importância de discutir as colocações de Boétie pode ser centralizada na necessidade de mostrar que existe a servidão quando ela é  consentida e que a natureza humana está associada à liberdade e não ao ato de ser escravo. A  liberdade é natural e a servidão um comportamento não natural. Etienne de La Boétie ao escrever sua grande obra suscita ideias a respeito das relações entre os súditos e o tirano. A obra abarca uma análise do grande problema da questão da tirania e o por quais motivos os indivíduos estabelecem uma relação de súdito voluntariamente.

Em seu raciocínio abstrato e universal, seu desenvolvimento de uma verdadeira filosofia política, e suas frequentes referências a antiguidade clássica, La Boétie seguiu o método dos escritores renascentistas, notadamente Nicolau Maquiavel.  Havia, no entanto, uma diferença crucial: ao passo que Maquiavel pretendeu instruir o príncipe sobre como cimentar seu poder, La Boétie se dedicou a discutir maneiras de derrubá-lo e assim assegurar a liberdade dos indivíduos. 

No entanto, o enfoque de La Boétie no raciocínio abstrato e nos direitos universais dos indivíduos, podem na verdade ser melhor caracterizados como um prenúncio do pensamento político do século XVIII.  Conforme disse J. W. Allen, o Discurso foi um "ensaio sobre a liberdade, igualdade e fraternidade humanas naturais".  O ensaio "serviu de apoio geral aos panfletários huguenotes ao insistir que a lei natural e os direitos naturais justificariam uma resistência forçosa contra os governos tiranos".

A liberdade
Salienta Etienne que a liberdade é um dom natural, pois, entre os animais, ao serem presos, opõem resistencia com suas garras, chifres, patas e bicos, demonstrando o quanto prezam a liberdade. Quando são cativos evidenciam a perda da liberdade, mostrando- nos que estão mais mortos do que vivos e continuam a viver para lamentarem a liberdade perdida. A respeito dos homens, a natureza fez todos iguais em aparência, sendo diferenciados nos dons, uns sendo mais fortes e inteligentes e outros mais fracos e menos inteligentes, no entanto, a natureza não colocou os homens em uma arena para os mais fortes e inteligentes dizimarem os mais fracos. A natureza ao favorecer alguns e desfavorecendo outras pessoas procura criar um campo de convivência estreitando as alianças integrando a todos, dando a alguns a oportunidade de ajudar e outros a condição de receber ajuda. Diz Etienne que todas as coisas que possui sentimento sentem a dor da sujeição e suspiram pela liberdade.

Estes trechos deixam claro que La Boétie se opõe fortemente a tirania e ao consentimento do povo a sua própria subjugação.  Ele também deixa claro que essa oposição baseia-se numa teoria de lei natural e de direito natural à liberdade.  Durante a infância, talvez devido ao fato de que a capacidade racional não foi completamente desenvolvida ainda, nós obedecemos nossos pais; mas quando crescemos, deveríamos seguir nossa própria razão, como indivíduos livres.  Conforme diz La Boétie: "Se vivêssemos com os direitos que a natureza nos deu e com as lições que nos ensina, seriamos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos à razão e servos de ninguém."

Assim diz Etienne, que vistas bem as coisas, não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe; nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver. Ter vários amos ou chefes é ter outros tantos motivos para se ser extremamente desgraçado. Digno de espanto, ainda maior  e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente.

Por outro lado é justo amarmos a virtude, estimarmos as boas ações, ficarmos gratos aos que fazem o bem, renunciarmos a certas comodidades para melhor honrarmos e favorecermos aqueles a quem amamos e que o merecem. Assim também, quando os habitantes de um país encontram uma personagem notável que dê provas de ter sido previdente a governá-los, arrojado a defendê-los e cuidadoso a guiá-los, passam a obedecer-lhe em tudo e a conceder-lhe certas prerrogativas; é uma prática reprovável, porque vão acabar por afastá-lo da prática do bem e empurrá-lo para o mal. Mas em tais casos julga-se que poderá vir sempre bem e nunca mal de quem um dia nos fez bem. Etienne nos alerta claramente que dar poderes de mais para um estado, mesmo ele alegando que estará fazendo o bem, na verdade o que a sociedade estar a fazer é dar incentivos para o mesmo fazer o mal.

Da Tirania                                                                         
Opondo-se a ordem natural surgem os tiranos que são de três espécies: os que chegam pela força das armas, outros pela sucessão hereditária e outros chegam ao poder pela eleição do povo. Os que chegam ao poder pela guerra comportam-se como conquistadores, subjugando o povo pelo poder das armas e apoderam de suas presas como se tivessem direito. Os que nascem reis, nascidos e criados no sangue da tirania, tratam os povos como se fossem servos hereditários, como quem lida com escravos naturais. Os tiranos que chegaram ao poder pela vontade popular, logo que assumem o governo, procuram permanecer como mandatários por todo o sempre, impondo as suas vontades e ultrapassando em crueldade os outros tipos de tiranos. Objetivando a conservação da tirania procuram, por todos os meios possíveis, aumentar a servidão fazendo com que os seus súditos esqueçam completamente o que é liberdade, procedem como quem doma touros. Os tiranos, sejam eles os que chegaram ao poder pelo uso das armas, ou pela hereditariedade ou pelo voto utilizam o mesmo modo de reinar.

O modo de reinar dos tiranos, depois que estão no poder, é oferecer ao povo divertimento através de bordeis, tabernas e jogos públicos. Gratificando os cinco sentidos de um povo é a forma mais fácil do tirano impor os seus desejos. Comenta Etienne, em seu discurso, que atrair o pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão, pois basta passar-lhes junto à boca um engodo insignificante. Os povos ludibriados pela satisfação dos sentidos divertem-se com grande prazer e para permanecerem vivendo no prazer habituam-se a servir com elevada sinceridade. O imperador Nero foi um verdadeiro monstro na arte de governar, no entanto, após sua morte o povo romano ficou com tanta pena (por se lembrar dos seus jogos e festins) que pouco faltou para vestir de luto. Júlio César foi o imperador que aboliu todas as leis e a liberdade do povo, governando com uma crueldade selvagem, mas, depois de morto, o povo, que tinha ainda na boca o sabor dos banquetes prestou-lhe inúmeras honrarias.

Etienne comenta em seu discurso que até mesmo os tiranos se espantavam como o povo pode suportar um homem que lhes faz mal; utilizando disfarces religiosos, tomando aspecto de certas divindades e doando-lhes todo tipo de divertimento para se protegerem da má vida que levam. Outro aspecto importante a ressaltar a respeito dos tiranos é que eles não governam sozinhos, mas são acompanhados por uma escória humana.

Os tiranos são destruídos no dia em que o povo não servir mais a tirania, não servir de instrumento do poder. O dia que o povo toma a decisão de nada fazer a favor do tirano, a tirania desaparece sem ser preciso travar um combate contra a minoria que está no governo. O povo deixa de ser esmagado quando deixa de servir o poder que o esmaga. Quando o povo deixa de obedecer ao tirano ele perde a vitalidade da mesma forma que a raiz sem umidade se torna um ramo seco e morto. A partir do momento em que o povo toma a resolução de não mais servir ao tirano o colosso descomunal cai por terra e se quebra porque lhe foi tirada a base.
"Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermos-nos dele. Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo.Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio. São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios. Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la? Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil? A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter. Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes."
O celebrado e inovador apelo de La Boétie pela desobediência civil, pela resistência não violenta do povo como um método de se derrubar tiranias, origina-se diretamente a partir destas duas premissas vistas acima: o fato de que todo governo depende do consentimento das massas, e do valor elevado da liberdade natural.  Pois se a tirania realmente depende do consentimento das massas, então o modo mais óbvio de destruí-la é simplesmente as massas retirarem este consentimento.  O poder da tirania iria repentinamente entrar em um rápido colapso com esta revolução não violenta.  

É importante tomarmos conhecimento que o tirano existe devido à aceitação do povo, a tirania torna-se realidade somente enquanto o povo prefere suporta-la e não deseja contrariar o soberano. O tirano não tomaria conhecimento do que o povo faz se o povo não fosse o seu olho. O tirano não maltrataria seu povo se o próprio povo não lhe emprestasse suas mãos. O tirano não esmagaria o povo se o povo não lhe desse os seus próprios pés. O tirano não teria poder se o povo não lhe tivesse dado o referido poder, todo poder emana somente do povo e se existe tirano é porque o povo o formatou. O tirano não perseguiria seu povo se o povo não fosse conivente com ele. O tirano possui existência porque o povo encobre os que roubam em nome do tirano e o povo é cúmplice dos assassinatos da própria tirania. A tirania existe porque o povo é o traidor de si mesmo.
"É espantoso e impressionante ver milhões de homens ficarem curvados, esmagados e dominados não por uma força muito grande e sim apenas pelo nome de uma só pessoa cujo poder não deveria assustar o povo porque é um só homem. Tristeza é ver um número infinito de pessoas que não obedecem, mas servem ao tirano, não são governadas, mas tiranizadas e não possuem nenhum tipo de liberdade própria. Triste é um povo que suporta a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, mas de um só homem. O povo que serve a um tirano é um povo covarde. É um fato estranho que poucos homens se deixem esmagar por um só, mas é inacreditável quando cem ou mil homens estão submissos a uma só pessoa e não se atrevem a desafiá-lo por covardia. Diante destas observações Etienne ressalta que os povos por covardia se deixam oprimir e que se tornam passivos, também por covardia."

A Servidão Voluntaria.
A covardia, materializada pelo desejo de servir se enraizou impedindo a busca da liberdade, fazendo com que o povo não sinta dor em servir, pois, o povo perdeu a consciência do que é liberdade. A causa que levou o homem a servir passivamente é que as pessoas já nascem e são criadas na servidão, são covardes por criação. O sistema faz com que robotizemos os nossos filhos de tal maneira que eles possam ir para os locais da exploração totalmente narcotizados, não sentindo arder nos corações o fogo da liberdade, não sendo capazes de grandes ações.

Criamos os nossos filhos para que os tiranos possam recrutá-los para a guerra e conduzi-los ao matadouro e fazer deles instrumentos de sua cupidez e executores das suas vinganças. O povo subjugado cai em tão profundo esquecimento da liberdade que se torna impossível o despertar para a autonomia, passando a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece que a liberdade nunca existiu. O tirano, a principio, emprega todos os meios possíveis para o constrangimento do povo, mas, com o passar dos anos e o nascimento de novas pessoas já cativas não conhecem a liberdade nem sabem o que ela seja, servem sem esforço e fazem de boa mente o que seus antepassados tinham feito por obrigação. A nova geração nasce sob o jugo, é criada na servidão, sem condições de saber o que é liberdade e limita a viver tal como nasceu tendo como natural à servidão. Dignos de pena são os que nascem com a canga no pescoço e por desconhecerem totalmente a liberdade não possuem consciência como é ruim viver na escravidão. A liberdade é um bem tão grande e tão aprazível que quando perdida tudo na vida perde o valor corrompido pela servidão.

Incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo esquecimento da liberdade que não desperta nem a recupera; antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade mas a servidão. É verdade que, a princípio, serve com constrangimento e pela força; mas os que vêm depois, como não conheceram a liberdade nem sabem o que ela seja, servem sem esforço e fazem de boa mente o que seus antepassados tinham feito por obrigação. Assim é: os homens nascem sob o jugo, são criados na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver tal como nasceram, nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer, aceitam como natural o estado que acharam à nascença. É natural no homem o ser livre e o querer sê-lo; mas está igualmente na sua natureza ficar com certos hábitos que a educação lhe dá. Diga-se, pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo costume; mas da essência da sua natureza é o que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito:

Deste modo, a tendência humana natural de ser livre é finalmente solapada pela força do hábito, pois a razão deste dom inato, não importa o quão bom seja, se dissipa se não for encorajada, sendo que o ambiente sempre nos molda de sua maneira, seja ele qual for, sem levar em consideração os dons naturais.  Assim, aqueles que nascem escravizados deveriam ser perdoados, "pois não tendo visto da liberdade sequer a sombra e dela não estando avisados, não percebem que ser escravos lhes é um mal...."  Embora, em suma, "a natureza do homem é mesmo de ser franco e querer sê-lo" mas o caráter de uma pessoa "naturalmente conserva a feição que a educação lhe dá."  La Boétie conclui que "a primeira razão da servidão voluntária é o costume".   As pessoas dizem que sempre foram súditas, que seus pais viveram assim; pensam que são obrigados a suportar o mal; convencem-se com exemplos e, ao longo do tempo, elas próprias constroem o poder dos que as tiranizam; mas como em verdade os anos nunca dão o direito de malfazer, aumentam a injúria.

Outro método de se induzir o consentimento é puramente ideológico: ludibriar as massas fazendo-as acreditar que o governante tirano é sábio, justo e benevolente.  Assim, La Boétie aponta que os imperadores romanos assumiram o título antigo de Tribuna do Povo, porque o conceito havia galgado aceitação entre o povo como sendo a representação do guardião de suas liberdades.  

Consequentemente, a concepção do despotismo sob o manto da velha forma liberal.  Nos tempos modernos, acrescenta La Boétie, os governantes apresentam uma versão mais sofisticada desta propaganda, pois eles "hoje não fazem mal algum, mesmo importante, sem antes fazer passar algumas palavras bonitas sobre o bem público e a tranquilidade geral." Reforçar a propaganda ideológica é uma mistificação deliberada: "Os reis da Assíria e também, depois deles, os de Média só apresentavam-se em público o mais tarde que podiam, para fazer a populaça se perguntar se não eram algo mais que homens."  Símbolos de mistério e magia eram entrelaçados ao redor da Coroa, para "suscitar em seus súditos alguma reverência e admiração. ...  Dá pena ouvir falar de quantas coisas os tiranos do passado utilizavam para fundar sua tirania, de quantas mesquinharias se serviam, encontrando essa populaça sempre às ordens ." Por vezes os tiranos chegavam ao ponto de imputar a si mesmos o status de divindade: "queriam muito pôr a religião na frente, como anteparo, e se possível, tomar emprestada alguma amostra da divindade para o mantimento de sua miserável vida." Deste modo, "os tiranos que, a fim de se manterem, se esforçam para acostumar o povo a eles não só por obediência e servidão, mas também por devoção."

Ideologia enganosa, mistério, circos; somando-se a estes recursos puramente de propagandas, outro recurso é usado pelos governantes para obterem o consentimento de seus súditos: a compra de benefícios materiais, tanto o pão quanto o circo.  A distribuição destas benesses ao povo é também um método, muito astucioso, de enganar o povo e fazê-lo acreditar que ele se beneficia com o governo tirânico.  Eles não percebem que na verdade eles estão recebendo uma pequena parte da riqueza que lhes foi tirada previamente pelos governantes.  E La Boétie prossegue mencionando os casos das tiranias monstruosas de Nero e Júlio César, sendo que a morte destes dois ditadores foi seguida de um profundo período de luto do povo, devido as supostas liberalidades de suas tiranias.

Como pode uma tirania ser derrubada se ela está cimentada na sociedade pelo costume, o privilégio e a propaganda?  Como o povo pode ser levado ao ponto em que poderá decidir retirar seu consentimento?  Em primeiro lugar, afirma La Boétie, nem todas as pessoas serão enganadas ou serão irrecuperavelmente submetidas à submissão pela força do hábito. Sempre há uma elite mais sensitiva que vai entender a realidade da situação; "sempre se encontra alguns mais bem nascidos que sentem o peso do jugo e não podem se impedir de sacudi-lo".  São estas pessoas que, em contraste com a "grande populaça", possuem "entendimento nítido e espírito clarividente", e "tendo a cabeça por si mesmos bem feita, ainda a poliram com o estudo e o saber".    Este tipo de gente nunca realmente desaparece do mundo: "Estes, mesmo que a liberdade estivesse inteiramente perdida e de todo fora do mundo, a imaginam e a sentem em seu espírito".

Por causa do perigo representado por estas pessoas esclarecidas, os tiranos sempre tentam suprimir a educação em seus domínios, e desta forma, aqueles que "conservaram a devoção à liberdade, por mais numerosos que sejam, porque não se conhecem; sob o tirano, é-lhes tirada toda a liberdade de fazer, de falar, e quase de pensar: todos se tornam singulares em suas fantasias". Neste ponto, La Boétie se antecipa aos analistas modernos do totalitarismo, como Hannah Arendt.  Mas há esperanças; pois a elite ainda existe, e, novamente indo buscar exemplos na antiguidade, La Boétie sustenta que líderes heróicos podem surgir que "vendo seu país maltratado e em más mãos, tendo decidido com boa intenção, íntegra e não dissimulada, libertá-lo".  Então, a tarefa óbvia desta corajosa elite com capacidade de discernimento é formar a vanguarda do movimento de resistência revolucionária contra o déspota.  Através do processo de educação, irão ensinar a verdade ao povo, irão devolver as pessoas os conhecimentos sobre as bênçãos da liberdade e sobre os mitos e ilusões promovidos pelo estado.

Apesar dele não dizer isso diretamente, La Boétie dá a impressão de que considera que a disseminação do conhecimento entre o povo não vai apenas fazer com que as massas se recusem a continuar consentindo, como também vão colaborar de maneira incalculável com seu andamento ao separar a parte da burocracia privilegiada insatisfeita do resto, criando uma divisão interna.

Não existe melhor forma de concluir uma argumentação sobre o conteúdo do notável Discurso da Servidão Voluntária do que mencionando o insight de Mesnard de que "tanto para La Boétie, quanto para Maquiavel, a autoridade só pode ser baseada na aceitação dos súditos: exceto que um ensina o príncipe como compelir essa condescendência, enquanto que o outro revela ao povo o poder que consistiria sua recusa."

O Discurso de La Boétie possui importância fundamental para os leitores atuais — importância essa que vai muito além do simples prazer de ler esta grande e seminal obra de filosofia política, ou, para os libertários, de ler o primeiro grande filósofo político libertário do mundo ocidental.  Pois La Boétie trata claramente do problema que todos os libertários — na verdade, todos os oponentes do despotismo — consideram particularmente complicado: o problema da estratégia.  Diante do devastador e aparentemente insuperável poder do estado moderno, como um mundo livre e bem diferente pode ser alcançado?  Como é possível sair da situação A e ir para a B, de um mundo de tirania para um mundo de liberdade?  Exatamente por causa de sua metodologia abstrata e atemporal, La Boétie oferece insights vitais para este eterno problema. Etienne nos mostra que ainda há esperança ainda que pequena;
“Sempre haverá umas poucas almas melhor nascidas do que outras, que sentem o peso do jugo e não evitam sacudi-lo, almas que nunca se acostumam à sujeição e que, à imitação de Ulisses, o qual por mar e terra procurava avistar o fumo de sua casa, nunca se esquecem dos seus privilégios naturais, nem dos antepassados e de sua antiga condição. São esses dotados de claro entendimento e espírito clarividente; não se limitam, como o vulgo, a olhar só para o que têm adiante dos pés, olham também para trás e para frente e, estudando bem as coisas passadas, conhecem melhor o futuro e o presente.” 
“Esses, ainda quando a liberdade se perdesse por completo e desaparecesse para sempre do mundo, não deixariam de imaginá-la, de senti-la e saborear; para eles, a servidão, por muito bem disfarçada que lhes aparecesse, nunca seria coisa boa.”
La Boétie também sugere a importância de se encontrar e encorajar alas insatisfeitas do aparato governamental, e de estimulá-las a romperem com o poder e apoiar a oposição ao despotismo.  Embora este esteja longe de ser o principal papel de um movimento libertário, todos os movimentos de sucesso contra a tirania do estado na história se utilizaram dessa insatisfação e dos conflitos internos, especialmente em seus estágios mais avançados.

La Boétie foi também o primeiro teórico a, depois de enfatizar a importância do consentimento, passar a enfatizar a importância estratégica de se derrubar a tirania ao fazer com que o povo retire este consentimento.   Consequentemente, La Boétie foi o primeiro teórico da estratégia popular de desobediência civil não violenta das ordens e extorsões do estado.  É difícil fazer considerações de ordem prática sobre tal tática, até porque ela foi muito pouco utilizada.

É premente que tentemos, como afirma o cientista político “...compreender o mal imanente à autoridade e recuperar a confiança na liberdade.” 
Liberdade esta sem os adjetivos limitadores de sua expressão máxima, como nos indica o pensamento político do jovem estudante francês, La Boétie:

Há vinte anos, quando a historiadora Cecilia Kenyon escreveu sobre os Anti-Federalistas que se opunham à adoção da Constituição americana, os desprezou por serem "homens sem fé" — quer dizer, sem fé num governo central forte.Hoje em dia já é difícil encontrar alguém com este tipo de fé cega no governo.  Numa época como a que estamos vivendo, pensadores como Étienne de La Boétie são muito mais relevantes, e muito mais genuinamente modernos, do que foram por todo o século que passou.



"Decidi-vos a não servir mais, e serei livres."
 
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